Pantanal, reino das águas
Tuiuiús e colhereiros ecoam seus cantos e espalham sua cor pelo rio Negro. Capivaras tentam driblar o calor sufocante com longos mergulhos. Jacarés, dezenas deles, deixam a água passar pelos dentes da boca escancarada aguardando um peixe mais desavisado. Do barco, observo a vida vibrando na maior planície alagável do mundo, com seus 210 mil quilômetros quadrados, duas vezes maior do que a área de Cuba. “A água é o coração do Pantanal”, havia me dito Guilherme Rondom quando estávamos ainda longe do rio, atravessando os campos secos entre a cidade de Aquidauana e a sua fazenda, a Barra Mansa. A frase ressoa em minha cabeça. Tento imaginar como é aquele lugar quando emerge sua outra face, aquela que se revela como um infindável mar de água doce.
“Os espelhos d’água duplicam o mundo, é belíssimo”, descreve Guilherme, que usa o cenário como inspiração para a carreira de músico marcada por parcerias com nomes como Almir Sater e Ivan Lins. Nessa época, os animais se escondem entre as árvores dos pequenos morros descobertos, que numa região desprovida de acidentes geográficos como ali são chamados de cordilheiras, mas navegando sobre as terras submersas é possível encontrá-los também. “Definitivamente, é a época em que o Pantanal está mais bonito”, reafirma. Confesso que é difícil acreditar. O rio Negro seguindo o seu curso sinuoso já me parece majestoso o suficiente. Mas o coração do Pantanal precisa bater. E quando novembro chegar, um aguaceiro vai desabar sobre a região. A água vai se acumular nos campos. A terra sem declives não conseguirá escoá-la e ela ficará ali, deixando que os peixes se reproduzam e a vegetação se delicie para crescer esverdeante mais tarde.
Para os homens que vivem ali é um tempo difícil. Chegar e sair, só de avião. Todo tipo de provisão, de comida a gasolina, precisa ser estocada antes que desabem as chuvas. Mas os pantaneiros parecem não se importar. Afinal, a essência do Pantanal deve prevalecer. “Esse ano a água foi subindo, subindo, subindo, parecia que não ia mais parar”, conta, às gargalhadas, Iolanda de Couto, cozinheira da Fazenda Barra Mansa, sobre a cheia histórica que deixou quase tudo embaixo d’água. Só a casa principal foi poupada. Se Iolanda se incomodou? Claro que não. “Ah, foi divertido, a gente ficava brincando logo aqui na porta, jogando água um no outro”, diz, apontando para o quintal.
Da pecuária ao turismo
Pode até ser divertido, mas nem sempre é bom para os negócios. Desde que se instalaram ali os bandeirantes, ainda no século 18, nasceram grandes fazendas dedicadas à pecuária. O problema é que se nas regiões mais altas do Mato Grosso do Sul é possível criar três cabeças de gado por hectare, no Pantanal a proporção é inversa, são três hectares, no mínimo, para cada animal: é preciso espaço para o gado fugir das áreas alagadas durante as cheias. Isso sem contar que a grama natural não é tão rica em proteínas quanto aquela usada tradicionalmente em pastos. Assim, as fazendas nasceram grandes, enormes, para lá de 30 mil hectares para que os negócios conseguissem pulsar junto com os ciclos de cheia e seca no Pantanal.
A questão é que sucessivos processos hereditários foram reduzindo essas áreas e, em muitos casos, famílias tradicionais foram embora. Mas a batida ritmada do pulso pantaneiro acabou atraindo a atenção de forasteiros. Eles chegam ali às centenas todos os anos, garantindo a sobrevivência da Fazenda Barra Mansa. Guilherme Rondom se mantém no Pantanal, representando uma das famílias pioneiras na região, apenas com o turismo. Em companhia das duas próximas gerações, o filho Daniel e o pequeno neto Antônio, recebe os visitantes que chegam de todas as partes para observar os belos pássaros e, claro, o maior felino das Américas, a onça pintada. Sorrateira, ela não gosta de posar para fotos, mas não há quem chegue ao Pantanal sem desejar avistá-la. Dessa vez, nossas lentes não captaram sua presença. Uma boa desculpa para uma nova visita em breve – até porque é quase impossível não ter a sensação de deixar para trás novos amigos ao sair da casa da família Rondom.
Partimos para outra fazenda mais adiante. Trepidando a bordo de um 4X4 avançamos por dentro do Pantanal, abrindo novas porteiras desse mundo desconhecido. A paisagem vista pela janela vai se alterando, a vegetação fica mais escassa, os campos mais abertos. Poços d’água no caminho, que em setembro já deveriam estar secos, dão sinais de que a cheia este ano realmente bateu recordes. Algumas baías, vales que represam a água e estendem seu tempo de permanência nessas paragens, vão secar em breve. Outras permanecerão para manter a vida silvestre vibrando e o coração do Pantanal batendo. Uma delas emprestou seu nome para a próxima fazenda do nosso percurso, a Baía das Pedras.
Comandada por Rita de Barros, também descendente de uma família tradicional da região, a fazenda encontrou outras formas para sobreviver aos novos tempos. Ali, o gado resiste, mas com a ajuda de técnicas modernas de manejo, como a inseminação artificial. Mas ela também não dispensa os visitantes. Pelo contrário, faz questão de acompanhá-los pessoalmente pelos caminhos da propriedade, onde outros animais, diferentes daqueles habituais do rio Negro, transitam todo o tempo. Seja a cavalo ou de carro, não é difícil deparar-se, por exemplo, com elegantes cervos ou surpreender-se com os inusitados tamanduás-bandeira. Quando não estão observando essa vida selvagem, os visitantes dividem a mesa de refeições não apenas com Rita. Em vários momentos do ano é possível cruzar ali com um animado grupo de pessoas que se vestem com roupas camufladas e saem diariamente à caça de antas e tatus. Caça no sentido figurado, claro.
Fonte: http://viagemecia.uol.com.br/brasil/reino_das_aguas.html